sábado, 3 de abril de 2010

"A Invasão" e "Vidas Secas"

Durante a leitura de "A Invasão" (Dias Gomes), achei alguma semelhança com "O Cortiço" (Aluísio Azevedo) e com "Jubiabá" (Jorge Amado). Mas quando fui remetida a Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos e Baleia, de "Vidas Secas" (Graciliano Ramos), quis por ao encontro uma e outra história. Audácia não faz mal a ninguém, né?!

A Invasão (AI) - Um grupo de favelados sem teto no Rio de Janeiro; entre eles, uma família paraibana.
Vidas Secas (VS) - Uma família de retirantes sem eira nem beira no sertão nordestino.

Fiz vários recortes. Deu nisso.


A fuga. Os trechos a seguir relatam a viagem sofrida de duas famílias fugindo da morte. Acho importante citar que foi nesse ponto da obra de Dias Gomes que lembrei de "Vidas Secas".

AI

Lula: Vocês também perderam o barraco?
Malu: Não. Nem chegamos a construir. Pai tinha arrumado um lugar, uns pedaços de madeira, quando veio a chuva.
Lula: Chuva do diabo.
Malu: Vocês aqui xingam a chuva. No Nordeste, a gente reza pra ela vir. E a peste não vem. Acaba a gente tendo que vender os teréns, comprar uma passagem num pau-de-arara e vir pra cá. Pra não morrer de sede... pra vir morrer aqui de fome, de desabamento ou outra coisa qualquer... a gente vivia mastigando raiz de umbuzeiro pra matar a sede... 15 dias espremido num pau-de-arara... sentado num banco duro, sem poder nem espichar as pernas...

VS

Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas... Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés... passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã.

É muito curiosa a relação com a terra. As duas famílias padecem devido à seca, mas tanto Fabiano quanto Justino apresentam uma simpatia pela terra quando a "isentam" de culpa.

AI

Justino: A culpa não é da terra... A culpa é dos homens. A terra também sofre. Também tem sede, como a gente. Mas em vez de dar de beber à terra, a gente o que faz é xingar, amaldiçoar, ou então fugir num pau-de-arara, como nós. A terra é boa, nós é que somos frouxos.

VS

A seca aparecia-lhe como um fato necessário... Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.

A Invasão. Acho mais que oportuno usar o título do livro de Dias Gomes para apresentar os fragmentos que seguem. Quantos Fabianos e Justinos existem no mundo? Fiquei a me perguntar...

AI

Justino: Vamos arrumar um lugar pra nós.
Santa: E a gente pode invadir assim...?
Justino: Poder não pode, mas tá todo mundo invadindo...

VS

Estavam no pátio de uma fazenda sem vida, tudo anunciava abandono. Certamente... os moradores tinham fugido.
...ficou um instante no copiar, fazendo tenção de hospedar ali a família.
[...]
Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto.


O que se faz quando a fome aperta? Até que ponto o ser humano é capaz de ir?

AI

Santa: Trouxe comida. Feijão, farinha...
Justino: Santa... como foi que você conseguiu tudo isso?... Você foi pedir esmola!
[...]
Rita: Eu tava com fome, pai. Foi por minha causa que a mãe começou a pedir!

VS

...foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando... Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo.

Eles não têm nem chão. Sentem-se acuados. Justino sente-se tão inferior quanto Fabiano; e Fabiano tem medo, como Justino nunca havia tido antes...

AI

Justino: Nós somos demais aqui... A cidade empurra a gente pra fora. Tudo empurra a gente pra fora. Até parece que nós cometemos um crime. Invadimos terra alheia... Fora da terra da gente, a gente perde a força... Uma frouxidão... Nunca tive medo de nada... e agora tudo me mete medo.
[...]
Malu: Acha que vão resistir, se a polícia vier?
Justino: Acredito não. Como eles botaram a gente pra fora do morro, botam pra fora daqui também.
[...]
Malu: Também não se pode ficar esperando, esperando que a polícia chegue e toque a gente daqui pra fora... A gente tem que ter um rumo!
[...]
Justino: ... mais cedo ou mais tarde tocam a gente daqui! Este prédio tem dono! E o dono não vai deixar...

VS

Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca.
[...]
E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau.
[...]
Era como se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo, espremê-lo num canto de parede... Fabiano sentia-se rodeado de inimigos... Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior.
[...]
Tudo na verdade era contra ele.

Lhes tiravam até o que não tinham. Não era só o dinheiro que lhes roubavam, seus direitos iam junto.

AI

Gorila: Era com o senhor que eu queria falar.
Justino: Comigo? Tou em dia...
Gorila: Tá em dia no aluguel. Mas tá devendo... Não lembra aquelas tábuas que eu lhe dei pra fazer o barraco, lá no morro?... Quem é que paga meu prejuízo?... E eu não posso perder, seu Justino.
Justino: Não tenho esse dinheiro.
Gorila: ... o senhor me disse que tinha dez contos guardados.
Justino: Mas é pra comprar a passagem de volta!... Eu e minha gente temos passado fome, juntando tostão a tostão!... Aquelas tábuas... a gente nem as usou... Depois da enchente, ficou tudo lá... é capaz do senhor inda achar e aproveitar...
Gorila: ... trate primeiro de pagar o que deve. Ou o senhor pensa que vai sair daqui sem me pagar?...
Justino (Num gesto lento, sofrido, como se arrancasse o próprio coração, ele puxa do bolso o maço de notas e o entrega a Mané Gorila.)

VS

Se pudesse economizar durante alguns meses... Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco... receava ser expulso da fazenda.
As contas do patrão eram diferentes... Fabiano sabia que elas estavam erradas e o patrão queria enganá-lo. Enganava. Que remédio? Podia reagir? Não podia... Aquele negócio de juros engolia tudo, e afinal o branco ainda achava que fazia favor.
Sentou-se numa calcada, tirou do bolso o dinheiro, examinou-o, procurando adivinhar quanto lhe tinham furtado... Nem lhe permitiam queixas. Porque reclamara, achara a coisa uma exorbitância, o branco se levantara furioso, com quatro pedras na mão.

A fuga. Esse foi o nome que Graciliano Ramos escolheu para o último capítulo de sua obra. E é dessa forma que começa e termina a aparição das duas famílias nos textos. Mas... termina? Quantas vezes mais terão que fugir? Esses últimos fragmentos também apresentam uma esperança, uma esperança capaz de remí-los... “o mundo é grande”.
 
AI

Malu: ... o mundo é grande. Tem que haver, em alguma parte, um lugar pra gente.
[...]
Justino: Não vejo a hora de ir embora, Santa... A seca já deve tá terminando... Você já imaginou? A terra toda enfeitada de verde... esperando a gente, perfumada de chuva... como mulher esperando seu homem. Terra boa aquela, Santa. A gente é que não presta.
Tonho: Comprou as passagens?
Justino: Comprei. Foi a conta certa... Estava com medo era de encontrar Mané Gorila... tive que lançar mão do dinheiro do aluguel deste mês...

VS

Como andariam as contas com o patrão? ...
Não queria lembrar-se do patrão... Mas lembrava-se, com desespero...
Não permaneceria ali muito tempo.
[...]
...combinou a viagem com a mulher... largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar aquela divida exagerada.
Agora Fabiano estava meio otimista... talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado.
[...]
Ia chover. A catinga ressuscitaria... E a catinga ficaria toda verde.
...Acomodar-se-iam num sitio pequeno... Cultivariam um pedaço de terra.
Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos? Fabiano respondeu que não podiam.
- O mundo é grande.



Fabiano e Justino. Eles sabem o que o outro diz. Enquanto escrevia, senti que eles eram solidários à miséria do outro.

6 comentários:

  1. Demais!
    Que "audacia" (como você mesma disse... rs) Mas também que grandiosidade, que forma especial de entrelaçar a vida "de duas famílias" e dois "Grandes Autores" de forma tão competente & BELA!!!
    Beijos, e uma pessoa que te admira. =)

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  2. Lembrei de uma música composta por Patativa do Assaré e cantada por Luíz Gonzaga... "A Triste Partida".

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  3. se pensarmos em definições literais, audácia é justamente o impulso de alma que nos leva a cometer ações extraordinárias. e é isso o que a gente leva da chata rotina diária, ou seja, tudo aquilo que foi "maior". achei super interessante sua proposta. além do mais, você tem competência para isso! vá fundo, "se jogue"...rsrs. beijão.

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  4. Não sei...

    Eu não sei como,
    Não sei alguem pode ser uma estrela
    e ainda assim se esconder atrás da timidez
    da menina inocente...

    Não sei se é possivel ser apenas mulher
    e ser tão inigualável, tens a sublime presença
    de um perfume maduro mesmo tão jovem.

    Não sei quem poderia criar você,
    Mas você existe e isto é maravilhoso.

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  5. Oi Lai!Lá na faculdade eu tenho uma matéria chamada Oficina de Texto e lá podemos colocar textos e histórias de outros autores para dialogar,assim como vc fez, é um máximo!

    Ass:Joiciélida

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  6. Patrícia Alexandre12 de maio de 2012 às 14:28

    O que dizer? Não sei...Acho que isso vc faz muito bem...deixar as pessoas sem palavras!
    É simplesmente maravilhoso ler o que vc escreve!Você teceu uma relação entre as histórias de vida de forma magnífica.
    Lai, minha amiga escritora, você sabe o quanto te admiro e torço por você.Digo sem medo de errar que, no lançamento de seu primeiro livro estarei lá, para receber seu precioso autógrafo! Grande beijoo.

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